Desde pequeno Gilberto José Souza Siqueira acompanhava a mãe, empregada doméstica, ao trabalho. Não havia patroa que reclamasse: lápis e papel bastavam para entreter o menino por horas e horas. Ingressar na escola, para ele, foi um presente, e as aulas de Arte tornaram-se as preferidas. Aluno de Aline Liberato do Ensino Fundamental ao Médio, o jovem não titubeia ao destacar a importância e a influência da professora – e da disciplina – em sua carreira. Gilberto hoje é grafiteiro e ministra oficinas em escolas do Vale do Paraíba (SP).
Gilberto se envolveu ativamente no projeto “O sonho do menino Portinari de colorir o Brasil: questões sociais e cultura local nas aulas de arte do ensino médio”, desenvolvido pela professora Aline Liberato na Escola Estadual Professor Waldemar Salgado, em Santa Branca (SP). Como ele, os demais estudantes se dedicaram de corpo e alma ao projeto vencedor da categoria Ensino Médio no XV Prêmio Arte na Escola Cidadã. “Não são todos os meus alunos que, como Gilberto, seguirão a carreira artística”, pontua Aline. “Mas estou certa de que a disciplina contribui no despertar a sensibilidade, tão importante para a vida.”
Realidade local
“Brodowski, onde Cândido Portinari nasceu, lembra muito Santa Branca”, compara a professora. “Meus alunos também soltam pipas, andam de bicicleta e brincam nas ruas enquanto os pais trabalham na roça”. Tal calmaria, porém, incomoda muitas vezes, especialmente aos jovens ávidos por cultura e novidade
s – a cidade, a 100 quilômetros de São Paulo, não tem cinema, teatro nem museus. O lazer se resume as festas religiosas e populares, além do tradicional passeio na praça.
Foi neste contexto que Aline desenvolveu o projeto vencedor, reunindo questões da cultura popular tradicional do Vale do Paraíba, onde a cidade de Santa Branca está localizada; da história da arte brasileira, por meio das obras de Portinari, que revelou a situação social e cultural de seu povo; do cotidiano dos alunos, suas lendas e histórias locais; das diversas linguagens artísticas, ampliando os conhecimentos, nutrindo estética e tecnicamente e dando oportunidade de escolha aos estudantes.
O pontapé inicial se deu com uma visita da professora e seus alunos à exposição “Guerra e Paz”, de Candido Portinari, no Memorial da América Latina (SP), que motivou amplo debate em sala de aula, enriquecido por bibliografia obtida por Aline no museu que homenageia o artista em Brodowsky. “Mostrei a eles que Portinari partia da ideia de Tolstoi de que um artista consegue ser universal a partir do momento que ele retrata sua própria realidade local”, detalha a docente.
Veio dos próprios alunos a iniciativa de apontar os aspectos culturais e a população de Santa Branca. O pátio da escola virou um ateliê onde bonecões de carnaval, típicos do Vale do Paraíba, ganharam vida a partir do resgate de histórias de personagens da própria cidade. “A confecção é trabalhosa, e durante três meses muitos estudantes ficaram depois do horário das aulas, o que causou estranhamento para os pais. Eu explicava o que estava acontecendo e eles se interessaram a ponto de colaborarem com os filhos na montagem da exposição”, conta Aline. Os cenários para estes personagens foram criados e executados em grafite por Gilberto, que também deu conta da caracterização do muro da escola.
A apresentação do projeto movimentou a escola e a comunidade. A professora, empolgada com o envolvimento do grupo, teve mais uma surpresa: um dos grupos gravou um curta-metragem sobre a vida de Portinari em Brodowski, utilizando locações de Santa Branca. “O cuidado com a direção, montagem, fotografia, figurino e música, além da pesquisa sobre o próprio artista, mexeu com todos que assistiram e me deixou bastante emocionada”, relembra a Aline.
Avaliando os resultados e aprendizagens do projeto e seu percurso, a professora acredita que o patrimônio histórico cultural material e imaterial da cidade e seus moradores ganharam visibilidade e foram valorizados. A cultura e os costumes locais ultrapassaram os limites da vergonha e acomodação para se tornar conteúdos de estudos, mote de experiências estéticas e artísticas; motivaram e impulsionaram outro grande projeto. “A arte concretizou sonhos, modificou pessoas e lugares, leu o mundo, uniu saberes e apresentou ideias, sentimentos e pensamentos”, finaliza.
Por Regina Ramoska