Alberto Roiphe[1]
O livro de memórias é um gênero especial, cheio de leis especiais. No meu caso, passado e presente convivem em perfeita harmonia. A lei do tempo e do espaço não domina. Minha memória não obedece a leis, mas à saudade que tenho dos doces de caju em caldas. Divinos cajus de minha infância. Rubros, dourados, imensamente cheirosos, de um colorido vibrante à luz do sol. (DIAS, 2011, p. 13)
Este trecho, extraído da obra Eu vi o mundo, de Cícero Dias, nos revela a opinião do próprio artista sobre um livro de memórias. Considerando que outros livros têm uma sucessão de fatos ocorridos como matéria da narrativa, no seu, Cícero Dias promete registrar mais do que meros acontecimentos, para isso, afirma recorrer, na verdade, a experiências vividas em nome da saudade que sente de sua infância.
No âmbito de um projeto realizado na escola, também podemos registrar mais do que simples sucessões de fatos, mas relatos de experiências vividas por nós, professores, e por nossos alunos, relacionadas às relações de ensino e aprendizagem. Para relatar essas experiências, entretanto, alguns elementos da narrativa, lembrados por Othon Garcia, têm papel significativo:
o quê: o fato, a ação (enredo);
quem: personagem (protagonista(s) e antagonista(s));
como: o modo como se desenrolou o fato ou ação;
quando: a época, o momento em que ocorreu o fato;
onde: o lugar da ocorrência;
porquê: a causa, razão ou motivo;
por isso: resultado ou consequência. (GARCIA, 2001, p. 255)
No relato de um projeto realizado na escola, “o quê” se refere à experiência em si, ao que sucedeu. O “quem” se refere aos professores e os alunos, os protagonistas de suas aprendizagens e de suas próprias formações, já que um projeto tem seu propósito formador. Além disso, o “quem” também versa sobre a diversidade cultural presente na escola e sobre a heterogeneidade das interações.
“Como” é a exposição pormenorizada das ações vivenciadas, a fim de que outro conheça a experiência passo a passo e a metodologia utilizada no decorrer do projeto. O “quando” se refere aos períodos em que ocorreram as experiências relatadas, às circunstâncias em que tudo se desenvolveu.
“Onde” é o espaço das experiências. Essa é, portanto, a oportunidade de contextualizar o lugar no qual as ações se deram, a escola, suas condições físicas e materiais. O “porquê” aponta as causas, as razões e os motivos pelos quais as experiências transcorreram, coincidindo, portanto, com os objetivos de um projeto.
Mesmo considerando esses itens fundamentais para a composição de um relato, obter todas essas informações não parece suficiente para quem vai escrever. Muitas vezes, a maior dificuldade para redigir está na organização do texto. Para estruturá-lo, porém, é importante ter em mente qual é a ideia central do relato e o que nos move a compartilhar a experiência.
Não existem normas para a estruturação de uma narrativa. Há, na verdade, sugestões para que o texto apresente partes definidas. Nesse caso, o texto poderia apresentar uma primeira parte, expondo “o quê”, “quem”, “onde”, “quando” e o “porquê” do projeto; uma segunda parte, evidenciando a forma como ocorreu a experiência, isto é, o “como”; e uma terceira parte, fornecendo os desdobramentos do projeto, o “por isso”. Uma pergunta fundamental, durante a construção do texto, é: O que não pode faltar para relatar o projeto com fidelidade?
Levando-se em conta que todo texto se caracteriza também pela unidade de sentido que apresenta, a garantia de coerência do relato está na sua boa organização, na relação pertinente entre as partes que o compõem e na progressão temática construída por informações que vão sendo apresentadas pouco a pouco. Tudo isso deve ser considerado, portanto, no planejamento do texto.
Outro aspecto a ser lembrado é que os dados relacionados às experiências que farão parte do relato são previamente selecionados pelo professor, com objetivos diversos.
São, por exemplo, pequenos diálogos entre alunos, que revelam suas sensações diante de alguma atividade; são reproduções de seus trabalhos, que evidenciam as formas de criação e as produções de sentidos; são fotografias, que permitem observar elementos que estão para além da descrição. Esses textos verbais e visuais não são meras comprovações. Em conjunto, são textos significativos compondo uma narrativa que, muitas vezes, vai se constituindo verbovisualmente. Tal inventário das produções revela, sobretudo, um percurso didático. Por esse motivo, os critérios de seleção hão de representar os materiais produzidos. Daí a necessidade de guardá-los, não no sentido de retê-los, mas no sentido tomado por Antonio Cicero para o verbo em seu poema homônimo:
"GUARDAR"
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fita-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Para guardar-se o que se quer guardar
(CICERO, 2008, p. 11)
A partir da exposição de todos esses materiais, ocorre, consequentemente, uma espécie de avaliação formativa dos alunos e, por que não dizer, do professor. Tornam-se evidentes também, nesse processo, as estratégias de ensino e de aprendizagem, de construção de saberes e de conquista da autonomia, sobretudo porque todo esse trabalho revela a sensibilidade dos alunos e do professor.
Por meio de um relato de experiências é possível conhecer a concepção de ensino de um professor, suas práticas pedagógicas, sua metodologia de ensino.
Relatar experiências é um exercício que lembra ainda o que diz Clarice Lispector sobre o ato de escrever:
Às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia. (LISPECTOR, 1999, p. 254)
É por meio de um relato de experiências, portanto, que o professor pode se tornar, à medida que narra, consciente de seu ato didático também como um ato de criação.
Referências Bibliográficas
BERNARDES, Carla; MIRANDA, Filipa Bizarro. Portefólio: uma escola de competências. Porto: Porto Ed., 2003.
CICERO, Antonio. Guardar. In: ______. Guardar: poemas escolhidos. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 11.
DIAS, Cícero. Eu vi o mundo; DIAS, Raymonde. Nós vimos o mundo. Edição e notas Augusto Massi. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna: aprenda a escrever, aprendendo a pensar. 20. ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001.
KOHAN, Silvia Adela. Como narrar uma história; da imaginação à escrita: todos os passos para transformar uma ideia num romance ou num conto. Trad. Gabriel Perissé. Belo Horizonte: Gutenberg, 2012.
LISPECTOR, Clarice. Sobre escrever. In: ______. A descoberta do mundo: crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 254.
[1] Professor de Literatura do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe