Boletim Arte na Escola

 

“As experiências pedagógicas precisam ter a criança como centralidade”. Quem faz este apontamento é a professora Carla Pinheiro, vencedora do XXI Prêmio Arte na Escola Cidadã, na categoria Educação Infantil. Na Escola Municipal do Loteamento Santa Júlia, em Lauro de Freitas/BA, a professora percorreu com seus alunos uma jornada de descobrimento e valorização de suas raízes afro-brasileiras a partir do brincar, no projeto Uhuru! Procura-se Representação.

Uhuru significa liberdade e vem do swahili, idioma falado em vários países do continente africano. O resgate da palavra Uhuru dialoga diretamente com o objetivo da professora: trabalhar com as crianças a construção de uma imagem positiva sobre si. A professora conta que em muitos episódios percebia um desconforto dos pequenos sobre sua imagem, “Sobretudo nas crianças mais escuras. Eu via que elas falavam sobre serem negras como se fosse uma coisa muito negativa”.

Após a leitura do livro “Que cor é minha cor?”, de Martha Rodrigues, Carla viu um de seus alunos falar com lágrimas nos olhos que não queria ser preto. Para a professora a situação foi como um alarme, e a fez refletir sobre quais experiências seu aluno teve, enquanto um indíviduo negro em formação. “Na hora eu fiquei sem reação, conversei com ele e tentei falar que ser preto não era uma coisa ruim. Mas ao refletir depois, vi como era uma necessidade imediata falar sobre o assunto, sobre a construção de uma perspectiva positiva de si”. O surgimento de alguns questionamentos ajudaram a nortear os passos do projeto: “Como ele vivencia aquela cor? Como o racismo chega até uma criança de 4 ou 5 anos? Como é a relação dele com a família? E com esse entorno que é majoritariamente negro?”

O pequeno não foi o único a expressar frases que refletem problemas da sociedade atual: “Prô, não vou pintar de rosa, é cor de menina!”, “Mas Prô, mulher não joga futebol!”, "Para ser princesa precisa ser branca e casar com um príncipe!”. Frases como essas apareciam em brincadeiras e conversas na turma, tornando evidente a necessidade de falar sobre gênero também, conta Carla Pinheiro.

Abordar temas tão urgentes, como raça e gênero, a partir do lúdico, foi uma necessidade que veio da própria turma. “E eu me perguntava, mas como fazer essa abordagem? Como trazer esses temas sem minimizar os saberes e as experiências deles?”. Esse processo foi pensado junto à toda a comunidade escolar: professores, coordenação, funcionários da secretaria e da manutenção da escola, além dos familiares de todos os alunos. A professora conta que se surpreendeu positivamente com a rede de apoio construída ao redor das ações.

Carla destaca, ainda, a contribuição da pesquisa feita pela psicóloga e escritora Maria Aparecida Silva Bento, sobre crianças na faixa etária de suas turmas, “Ela traz, em seus estudos, que crianças a partir de 4 anos já interpretam, já percebem e já hierarquizam as questões etnico-raciais e de gênero”.

“Foi um projeto que valorizou o protagonismo infantil e a efetiva relação entre escola, família e comunidade”. Este foi um projeto que não poderia de forma alguma ser resumido em uma ação pontual, mas sim em um percurso de propostas pedagógicas ligadas à arte, à contação de histórias, ao brincar e à valorização da cultura local. Foram rodas de conversa com os alunos, livros, filmes e animações com personagens negras, mulheres e meninas que colocaram as crianças em contato com narrativas de empoderamento.

Uma personagem importante no processo foi a boneca Sofia Iasmin, nome que foi escolhido pela turma em uma votação que simulou um processo eleitoral. A boneca negra, quase do mesmo tamanho que as crianças da turma de Carla, acompanhou os pequenos em piqueniques, brincadeiras, e se tornou uma integrante importante da aula e das questões que a professora levantava: "Afinal, onde estão as bonecas negras? Quantos têm bonecas negras para brincar?”

A educadora conta que a dureza dos assuntos não foi um impedimento para chegar até as crianças e que a riqueza de referências, dentro e fora da sala de aula, foi essencial para trazer ludicidade ao processo. Para ela, “a interação e as percepções das crianças foram mudando de uma forma muito natural”, e completa dizendo que o fortalecimento da imagem positiva das crianças pode acompanhá-los ao longo da vida.

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