O espaço da escola vai muito além das suas fronteiras. Há espaços extramuros – dos arredores, da cidade, das vizinhanças, do infinito virtual – que a escola também habita. Quando estes espaços “fora” são ocupados com ações e projetos que estreitam o laço de estudantes com a comunidade ao redor (e vice-versa), abrem-se janelas para uma potente relação da juventude com a escola.
O projeto Artes Cênicas: pulando o muro da escola aconteceu em 2018 no Instituto Federal do Rio Grande Norte, no Campus Pau dos Ferros. O Instituto fica no sertão do Rio Grande Norte, onde a larga maioria dos estudantes é formada por filhos de agricultores e vivenciam uma verdadeira jornada para chegar até a escola. Os alunos vêm de mais de vinte municípios vizinhos, inclusive de cidades do Ceará e da Paraíba. “Para nós, é corriqueiro ouvir depoimentos de alunos que pedalam ou andam quilômetros, indo da zona rural para a cidade, onde pegam um transporte até a escola”, conta o professor de Artes Emanuel Alves Leite, autor do projeto, que foi reconhecido no XXI Prêmio Arte na Escola Cidadã.
A jornada longa para chegar até a escola não altera em nada o orgulho que pais, alunos e professores sentem do IFRN/PF, muito pelo contrário. Existe um sentimento declarado por parte da comunidade escolar de que aquele Instituto Federal é um espaço de cuidado e conexão. Recém chegado na escola, o próprio professor Emanuel tinha um sonho antigo de lecionar no Campus Pau dos Ferros. Sua jornada pessoal se aproxima do trajeto diário dos alunos. Emanuel também deixou sua cidade para estudar Artes na capital, há 15 anos, e recentemente voltou para o sertão como professor. “Eu sou filho daqui, sou filho dessa região, do Sertão do Rio Grande do Norte. E sou filho da importante expansão dos Institutos Federais no interior do Rio Grande do Norte.”
Emanuel chegou ao IFRN/PF para lecionar Artes/Teatro e lá ele se surpreendeu com problemáticas - trazidas pelos alunos - que não havia encontrado nas outras escolas por onde passou. Era, de fato, uma escola com um contexto bem peculiar. O professor buscou então parceiros na equipe de psicologia da escola para mapear as tensões manifestadas pelos alunos: bullying, pressão psicológica, depressão, violência contra a mulher e questões raciais.
O estopim para o professor traduzir as tensões sentidas pelos alunos em expressão cênica foi a provocação que ele fez às suas turmas de Ensino Médio: “O que você gostaria de dizer em discurso, que poderíamos transformar em Arte?” Uma proposição que não faria sentido se os protagonistas do projeto não fossem os próprios alunos.
Ficou decidido que a Performance seria a linguagem condutora a partir de então. “O projeto buscava ir além da construção de conhecimento e de conteúdos de forma tradicional, mas desenvolver aptidões de cunho atitudinais e procedimentais, referenciados em Zabala (1998), tendo como metodologia a transformação do percurso em um processo criativo de artes cênicas, no qual estudantes construiriam conhecimentos específicos do ‘conteúdo’ performance, para criar um espaço de voz ativa e protagonista, além de construírem um diálogo mais aproximado com a comunidade escolar de maneira geral” conta Emanuel, que passou a ser conhecido pelos alunos professor Emanuel Coringa.
Muitas discussões aconteceram na turma antes que os alunos começassem a produzir as performances e vídeo-performances de fato. Era importante mapear o que movia os estudantes naquele momento da vida deles, para então fazer um recorte de quais seriam os temas das performances. “Buscamos agir trazendo assuntos transdisciplinares preocupantes na contemporaneidade escolar e na vida familiar e social dos estudantes, extramuros do instituto, refletindo na sala de aula sobre as relações que estabelecemos com o outro e com nós mesmos.”
Além desta pesquisa coletiva de questões que poderiam pautar a dramaturgia das performances, o professor Emanuel Coringa se empenhou em reverberar na turma alguns conceitos cênicos para que eles se familiarizassem com os signos e símbolos contidos em uma peça teatral, tendo como referência as reflexões do pesquisador Flávio Desgranges e sua proposta de uma pedagogia para o teatro pautada na importância do público. “Segundo documentos nacionais como BNCC e o PPP da escola, naquilo que diz respeito ao ensino de arte, a busca não é pela formação de artistas, mas de estudantes capazes de vivenciar a ação teatral, seja na prática do palco, ou na prática de espectador, de forma analítica e reflexiva, compreendendo o espectador como parte integrante e consciente de sua função essencial para o desenvolvimento de um espetáculo.” As referências – com destaque para artistas e coletivos potiguares – foram trazidas pelo professor para provocar a fruição dos alunos, estimular uma leitura e um gosto pelo debate estético, juntamente com exercícios teóricos/práticos sobre elementos que compõem a cena: figurino, maquiagem, cenografia, espaço de atuação, atuação, música e criação de roteiro cênico.
Neste mergulho que os estudantes fizeram sobre o fazer cênico, o projeto Artes Cênicas: pulando o muro da escola quis jogar luz sobre um aspecto em especial: os espaços de atuação e as possibilidades que eles oferecem aos performers, extrapolando as fronteiras da escola e focando no espaço urbano, a relação com a cidade e a transformação dos transeuntes em público. “Era necessário que os estudantes compreendessem que a performance pode ser desenvolvida em qualquer ambiente, entre eles, os espaços mais populares que existem para o diálogo entre arte e público hoje: a rua e a internet!”
Continua o professor Emanuel: “Para compreender a relação do espaço de atuação como parte integrante da composição cênica, fizemos um exercício em que os alunos se apropriavam de textos diversos, levados para a sala de aula, e saiam da sala para buscarem em todo o campus espaços que remetessem simbolicamente/cenicamente ao texto escolhido. Em um outro movimento, os alunos fariam fotos do espaço escolhido incluindo o corpo dos estudantes/performers na imagem, e depois apresentavam para a turma o texto, o local escolhido e a imagem construída sobre a relação corpo/espaço.”
As práticas de atuação começaram com jogos teatrais que trabalhassem o olhar, o movimento e a fala como elementos cênicos, atentando sempre para a relação estabelecida entre os alunos-performers e o público para quem eles estavam se apresentando. A turma foi dividida em grupos de no máximo oito alunos para um Ateliê de Dramaturgia. Após discutirem internamente, cada grupo deveria escolher o tema central de sua performance e escrever o roteiro performático. O Ateliê de Dramaturgia contou também com a participação de professores parceiros de sociologia e psicologia, que fizeram uma leitura crítica dos roteiros e conversaram com os grupos sobre estratégias para aprofundar os temas transversais a partir do que eles já tinham escrito.
“Durante o período de desenvolvimento do processo colaborativo para as montagens performáticas, tivemos aulas focadas nas soluções cênicas das performances, e os exercícios práticos agora eram feitos dependendo das necessidades específicas de cada grupo, como uma espécie de estudo dirigido, tendo como referência os “Jogos Teatrais” da pesquisadora Viola Spolin, com foco no estranhamento, distanciamento e procedimentos de cenas ligados a Bertolt Brecht. A atuação performática e os elementos de cena compunham um movimento de experimentação e criação.”
Depois que cada grupo terminou a criação de sua performance e vídeo-performance, aconteceram rodadas de apresentações em que a turma toda discutiu os trabalhos e deu ideias para enriquecer as produções. As performances foram ficando cada vez mais azeitadas e foram então apresentadas para público externo. O professor fez uma parceria com a “Semana de Negritude e Diversidades” e as vídeo-performances fizeram parte da programação. E mais: os alunos-performers ocuparam as ruas! Eles de fato extrapolaram os muros da escola e se apresentaram pela cidade afora, vivenciando na prática dois pilares fundamentais deste projeto: o vínculo com espaço e com o público espontâneo da performance.
As vídeo-performances, por sua vez, correram mundo. Foram publicadas em blogs locais, no site da escola, em canais do Youtube e tiveram mais de 10 mil visualizações. “A qualidade estética das ações performáticas construídas me surpreendeu. Os cuidados com elementos de cena ficaram evidentes nas ligações dramatúrgicas, com fortes apelos simbólicos, compreendendo na prática a frase: nada é colocado em cena por acaso” avalia o professor Emanuel Coringa.